quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

só o suficiente


"(...) sem contar que ela, de olho no sangue do termômetro, se metera a regular também o mercúrio da racionalidade, sem suspeitar que minha razão naquele momento trabalhava a todo vapor, suspeitando menos ainda que a razão jamais é fria e sem paixão, só pensando o contrário quem não alcança na reflexão o miolo propulsor, pra ver isso é preciso ser realmente penetrante, não que ela não fosse inteligente, sem dúvida que era, mas não o bastante, só o suficiente, e eu poderia atrevido largar às soltas o raciocínio, espremendo até o bagaço o grão do seu sarcasmo, mas eu não falei nada, não disse um isto, tranquei minha palavra, ela não teve o bastante, só o suficiente, eu pensava, por isso já estava lubrificando a língua viperina entorpecida a noite inteira no aconchego dos meus pés e etcétera, eu só sei que continuei de cabeça baixa mas avançando, as coisas aqui dentro se triturando, e eu tinha, e isso era fácil de ver (...)"

"(...) "puta" e tornei a voar a mão, e vi sua pele cor-de-rosa manchar-se de vermelho, e de repente o rosto todo ser tomado por um formigueiro, seus olhos ficaram molhados, eu fiquei atento, meus olhos em brasa na cara dela, ela sem se mexer amparada pelo carro, eu já recuperado no aço da coluna, ela mantendo com volúpia o recuo lascivo da bofetada, cristalizando com talento um sistema complexo de gestos, o corpo torcido, a cabeça jogada de lado, os cabelos turvos, transtornados, fruindo, quase até o orgasmo, o drama sensual da própria postura, mas nada disso me surpreendia, afinal, eu a conhecia bem, pouco importava a qualidade da surra, ela nunca tinha o bastante, só o suficiente, estava claro naquele instante que eu tinha o pêndulo e o seguro controle do seu movimento, estava claro que eu tinha mudado decisivamente a rotação do tempo, sabendo, como eu sabia, que eu tinha a explorar áreas imensas da sua gula, sabendo, como eu sabia, de que transformações eu era capaz (...)"

* Raduan Nassar em Um copo de cólera.

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

e se eu também dissesse "que tanto você insiste em me ensinar?" ela haveria de dizer "esquece amor esquece" e se eu lhe dissesse "já é dia, faz tempo que o teu bom senso se espreguiçou, por que caminhos anda ele agora?" ela haveria de dizer "não sei amor não sei" e vendo o calor, sacro e obsceno, fervilhando em sua carne eu poderia dizer "mais cuidado nos teus julgamentos, ponha também neles um pouco desta matéria ardente" e ela sem demora concordaria "claro amor claro" e me lembrando do escárnio com que ela me desabou, eu, sempre canalha, poderia dizer como arremate "e quem é o macho absoluto do teu barro?" e ela fidelíssima responderia "você amor você" e eu poderia ainda meter a língua no buraco da sua orelha, até lhe alcançar o uterozinho lá no fundo do crânio, dizendo fogosamente num certeiro escarro de sangue "só usa a razão quem nela incorpora suas paixões", tingindo intensamente de vermelho a hortênsia cinza protegida ali, enlouquecendo de vez aquela flor anêmica, fazendo germinar com meu esperma grosso uma nova espécie (...)

*Raduan Nassar em Um copo de cólera.

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

As sensações físicas involuntariamente produzidas em alguém que leia a obra carregam consigo algo que se refere ao conjunto das experiências que o leitor tem de sua humanidade — e de seus limites como personalidade e como corpo. A singularidade da intenção pornográfica é, na realidade, espúria. Mas a agressividade da intenção não o é. Aquilo que parece um fim é, na mesma medida, um meio, assustadora e opressivamente concreto. O fim, entretanto, é o menos concreto. A pornografia é um dos ramos da literatura — ao lado da ficção científica — voltados para a desorientação e o deslocamento psíquico.

*Susan Sontag em A imaginação pornográfica.

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Recomponho os ponteios de Guarnieri, em minha alma prepotente há somente uma noção: como conhecer as coisas senão sendo-as?

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

A tragédia de Hamlet é minha, presunção da minha alma por isso mesmo trágica. Eu, também rainha livre em país estranho, Maria Stuart moribunda e empobrecida.

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Que faria, então, dessa sua timidez, de tão profundas raízes, que sempre o impedia de comer ou beber sob tetos de estranhos? Que seria feito do orgulho do seu espírito que sempre o fizera considerar-se um ser à parte em todas as ordens?

* Joyce em Retrato do artista quando jovem.

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Uma ação moral torna-se uma ação bonita apenas quando assemelha-se a um efeito espontâneo de natureza. Beleza moral é quando o dever se torna uma segunda natureza. O dever precisa se tornar segunda natureza, porque senão ele constrangiria a natureza e negaria sua liberdade. Uma alma bonita é quando o senso moral em uma pessoa tomou tal controle de todos os seus sentimentos que pode confiar a vontade às emoções. O ideal de harmonia ocorre quando beleza é una com natureza.

Schiller, te amo.

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

1- Pessoas são como os lugares que frequentam, ou melhor, os lugares tomam suas feições, como bem diz Balzac. A aura que se dá a um lugar não deixa de ser a aura que atribuem a si mesmas. É a lógica do parecer que dá as cartas mais uma vez, estandarte do tudo vazio.

2- Há lugares em que a sociabilidade não sai do âmbito da superfície,onde tudo ocorre automaticamente, templos da rotatividade e das primeiras impressões. Há aí um falseamento, um exercer social preguiçoso, um estar para o outro que é relativo. No fundo, interessar-se pelos demais nessas situações reflete, na verdade, um sincero desinteresse por si mesmo.

3- Trata-se de uma opção real de fuga, é a possibilidade de se esquivar daqueles que te apreendem. Daqueles que são você. (a cadeira é cadeira e o quadro é quadro porque te participam).

4- O que acaba por aflorar é a noção de que, nessas situações, o existir não poderia ser mais solitário. (não, ela não estava mais lá).

*Notas nem um pouco petulantes, de ordem subjetiva, sobre a vida que se vive por aí.

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

A intenção é nunca ser descritivo, nunca.

Um atropelo e continuo, mas como continuar?
Durou pouco mas foi forte. Estou bem.
Galhos não se movem sozinhos, que estupidez.
Ileso? Quem? Eu?
É que quando a ação se dá no plano do sentir, onde tudo é abstração...
O meu estar no mundo não é mais que uma presente ausência.
Pra que se arruinar?
Fui eu.
Foi um susto.
Verô, sou eu.

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

A dor na conciência cessou ao enveredar apressadamente através das ruas escuras. Havia tantas lajes de pedra na calçada dessa rua e tantas ruas nessa cidade e tantas cidades no mundo! E no entanto, a eternidade não tinha fim. Ele estava em pecado mortal. E mesmo, mais um podia lhe vir. Isso podia acontecer num instante. Mas como assim tão de repente? Vendo, ou pensando ao ver. Os olhos vêem uma coisa sem primeiro haverem desejado vê-la. Depois, num instante, aquilo se dá. Mas será que essa parte do corpo compreende, ou o que é que acontece? A serpente, o mais sutil dos animais da terra. Ela deve compreender logo, quando instante, pecaminosamente. Sente, compreende e deseja. Que coisa horrível! Quem fez isso ser assim, uma parte bestial do corpo apto a compreender bestialmente e a desejar bestialmente? Era pois, então, ele, ou uma coisa inumana movida por uma alma inferior? A sua alma sujeita ao pensamento de uma vida tórpida e rastejante alimentando-se do tutano tenro da sua vida e engordando com o lodo do desejo. Oh! Por que era isso assim? Oh! Por que?

* Retrato do artista quando jovem, James Joyce.