quinta-feira, 31 de maio de 2012

Me visitei ontem. Revi meus apontamentos, inquietações e incursões literárias do período de 2006 a 2009. Entesourar frases era passatempo, me achava forte e muito inteligente. Ligava fotografias a trechos de livro de forma equivocada. Tentava escrever sobre o nada com um método bem capenga: anotava em um caderno todas as palavras mais empoladas e bonitas, passava horas procurando em livros de história da arte e poesia os dizeres perfeitos para meu léxico pessoal. Depois ia costurando tudo. Construía textos que remetessem a minhas mazelas de amor, nenhuma de fato correspondente ao sofrimento que eu inventava. Não dominava o português, cometia erros primários que, em constraste com a pedância do vocabulário, me deram o título de pretensa escritora mais risível da história. Reli tudo, primeiramente com espanto, depois com muita ternura. Meus primeiros passos foram errantes como se deve ser.
Me conheceu enquanto caminhava e logo viu em mim a vulgaridade de quem consente. Mal sabia que era pra ele que eu posava nítida. Me viu porque me procurava. Não ficou pasmo com meu atrevimento, se nele nasci foi porque deixou.

segunda-feira, 14 de maio de 2012


What sort of diary should I like mine to be? Something loose-knit and yet not slovenly, so elastic that it will embrace anything, solemn, slight or beautiful, that comes into my mind. I should like it to resemble some deep old desk or capacious hold-all, in which one flings a mass of odds and ends without looking them through. I should like to come back, after a year or two, and find that the collection had sorted itself and refined itself and coalesced, as such deposits so mysteriously do, into a mould, transparent enough to reflect the light of our life, and yet steady, tranquil compounds with the aloofness of a work of art. The main requisite, I think, on reading my old volumes, is not to play the part of a censor, but to write as the mood comes or of anything whatever; since I was curious to find how I went for things put in haphazard, and found the significance to lie where I never saw it at the time.

V. Woolf

segunda-feira, 16 de abril de 2012

O homem da minha vida está morto.
!Amor, enemigo mio,
muerde tu raíz amarga!

sábado, 24 de março de 2012

O dito pelo não dito.



Para quê pormo-nos em movimento para apanharmos aquilo que já nos pertence? Cumulaste-me de tudo à saciedade e para sempre, deste-me em demasia, deixaste que eu te tomasse demais para que eu agora necessite que me dês ainda qualquer coisa mais. Quem iria querer que lhe continuassem a verter líquido num recipiente que já está cheio até à borda? *Robert Walser em A Rosa.


terça-feira, 20 de março de 2012

Os filmes franceses e italianos eram exibidos regularmente em Santo Amaro. Os mexicanos também. E, se - apesar da extraordinária beleza de Maria Felix - percebíamos como que uma inferioridade do Olimpo da Pelmex, não fazíamos - nem nos parecia concebível que em parte alguma se fizesse - nenhuma diferença de qualidade ou de importância entre as estrelas americanas e as européias. No início da nossa adolescência, era a exposição de intimidades eróticas o que nos atraia nos filmes franceses: um seio de mulher, um casal deitado numa mesma cama de ferro, a indicação indubitável de que os personagens tinham vida sexual - tudo o que não podia ser visto num filme americano, os filmes franceses ofereciam com naturalidade. (E nós tínhamos a sorte de não ter de enfrentar, àquela altura, nenhum tipo de fiscalização da idade dos espectadores, não havendo representantes do juizado de menores em Santo Amaro.) Mas o cinema italiano, à medida que o tempo passava e nós crescíamos, nos interessava cada vez mais pelo que considerávamos ser sua “seriedade”: o neo-realismo e seus desdobramentos nos foram oferecidos comercialmente e nós reagimos com a emoção de quem reconhece os traços do cotidiano nas imagens gigantescas e brilhantes das salas de projeção.

Um dos acontecimentos mais marcantes de toda a minha formação pessoal foi a exibição de La estrada de Fellini num domingo de manhã no Cine Subaé (havia sessões matinais aos domingos nesse que era o melhor - o único que chegou a ter cinemascope - dos três cinemas de Santo Amaro). Chorei o resto do dia e não consegui almoçar - e nós passamos a chamar Minha Daia de Giulietta Masina. Seu Agnelo Rato Grosso, um mulato atarracado e ignorante que era açougueiro e tocava trombone na Lira dos Artistas (uma das duas bandas de música da cidade - a outra se chamava Filhos de Apolo), foi surpreendido por mim, Chico Motta e Dasinho, chorando à saída de I vitelloni, também de Fellini, e, um pouco embaraçado. justificou-se. limpando o nariz na gola da camisa: Esse filme é a vida da gente! Lembro de Nicinha, minha irmã mais velha, comentando que, enquanto nos filmes americanos os atores trocavam algumas palavras à beira dos pratos de refeição e o corte sempre vinha antes que eles fossem vistos pondo a comida na boca e mastigando, nos filmes italianos as pessoas comiam - e às vezes falavam enquanto comiam.

*Caetano Veloso em Verdade Tropical.