segunda-feira, 28 de junho de 2010

Uma tal expressão de infelicidade por si só bastava para fazer os olhos de alguém deslizar por cima da margem do jornal para o pobre rosto da mulher - insignificante sem aquele olhar, com ele quase um símbolo do destino humano. A vida é o que se vê nos olhos das pessoas; a vida é o que elas aprendem e, depois que o aprenderam, jamais, embora procurem escondê-lo, deixarão de estar cientes - de quê? De que, parece, a vida é assim. Cinco rostos frente a frente - cinco rostos maduros - e em cada rosto a consciência. Estranho, porém, como desejam dissimulá-la! Há sinais de reticência em todos os rostos: lábios cerrados, olhos sombrios, cada uma das cinco pessoas faz alguma coisa para esconder ou anular a consciência. Uma fuma; outra lê; a terceira verifica as notas num livro de bolso; a quarta fita o mapa do trajeto no painel em frente; e a quinta - o mais terrível a respeito da quinta é que não faz absolutamente nada. Ela olha a vida. Ah, mas minha pobre e infeliz mulher, participe do jogo - por nossa causa, dissimule!

Como se me tivesse ouvido, ergueu os olhos, ajeitou-se de leve no assento e suspirou. Parecia desculpar-se e ao mesmo tempo dizer-me: "Se ao menos você soubesse!" E depois voltou a olhar a vida. "Mas eu sei", respondi em silêncio, dando uma olhadela no Times, só por hábito. "Sei de todos os assuntos: 'A paz entre a Alemanha e as Forças Aliadas foi anunciada ontem em Paris - Signor Nitti, o primeiro-ministro italiano - Um trem de passageiros chocou-se com um trem de carga em Doncaster...' Todos nós sabemos - o Times sabe - mas fingimos que não". Mais uma vez meus olhos se deslocaram para além das margens do jornal. Ela estremeceu, contorceu o braço de modo estranho até o meio das costas e balançou a cabeça. De novo mergulhei no meu grande reservatório de vida. "Escolha o que lhe agrada", continuei, " está tudo no Times!" De novo, com infinito fastio, ela moveu a cabeça de um lado para o outro, até que esta, como um pião exausto de girar, assentou-se no pescoço.

O Times não podia protegê-la contra uma dor como a dela. Mas outros seres humanos negaram-se à comunicação. O melhor a fazer contra a vida era dobrar o jornal de modo a torná-lo um quadrado perfeito, encrespado, compacto, impermeável até mesmo à vida. Feito isso, levantei rapidamente os olhos, armada do escudo feito por mim mesma. Ela trespassou-me o escudo; fitou-me dentro dos olhos como que a procurar, na profundidade deles, um sedimento qualquer de coragem para depois dissolvê-lo em barro. Sua convulsão por si só negava toda esperança, abatia toda ilusão.

Virginia Woolf em Um romance não escrito.

Deitaram-se no chão, e ela foi tomada por um entorpecimento esmagador. Antônio disse:

_Você se sente como morta, não é?

Foi como se tivessem lhe dado éter. A voz dela parecia vir de muito longe. Ela gesticulou para mostrar que sentia como se estivesse desmaiado. Ele disse:

_Vai passar.

Então começou um sonho horripilante. Ao longe estava a silhueta do homem prostrado, deitado de costas na esteira, depois a silhueta de Antônio, muito grande e escura. Antônio pegou o canivete e inclinou-se sobre Mathilde. Ela sentiu o pênis de Antônio dentro de si, macio e prazeroso, ela mexia-se em gestos lentos, relaxados, vacilantes. O pênis foi retirado. Ela sentiu-o deslizar para fora da umidade sedosa entre as pernas abertas, mas ela não estava satisfeita e fez um gesto como que para reavê-lo. A seguir no pesadelo Antônio segurou o canivete aberto e inclinou-se sobre as pernas abertas de Mathilde e tocou com a ponta do canivete, empurrando-o levemente para dentro. Mathilde não sentiu dor, nem teve energia para se mexer, estava hipnotizada por aquele canivete aberto. Então ficou loucamente consciente do que estava acontecendo – não era um pesadelo. Antônio estava observando a ponta do canivete tocar a entrada do sexo. Mathilde gritou. A porta se abriu. Era a polícia, que tinha vindo buscar o ladrão de cocaína.

Mathilde foi salva do homem que muitas vezes havia retalhado a abertura sexual de prostitutas e que por esse motivo jamais tocava sua amante ali. Ele ficou salvo apenas enquanto morou com ela, enquanto a provocação dos seios dela manteve sua atenção afastada do sexo, da mórbida atração pelo que ele chamava de “feridinha de mulher”, que ele ficava tão violentamente tentado a alargar.

Anaïs Nin em Mathilde.

domingo, 27 de junho de 2010

Levantei e fui direto ao quarto dos meus pais, queria um pouco de algodão. Puxei o pacote da estante e caiu em meu colo um anel de minha mãe. É dourado, grosso e maleável, feito de malha em ouro. Do meu dedo o anel não sai mais, acabou por ornar o que uso pra pinçar cigarros. É desconfortável e parece dizer o tempo todo: não seja como tua mãe. Agora é meu.

Tinha 16 quando do primeiro, daí até cá, meu corpo sente os hematomas de minha alma¹. Enjôo até então era conseqüência de deslocamentos, qualquer que fosse. Hoje enjôo é permanência. Vivo na roda do mesmo jardim, só saio a cada dez dias pra buscar na farmácia o antídoto, troco o enjôo pelo torpor. Torpor sem enjôo é uma possibilidade? O efeito colateral atinge minha fala, falar é muito difícil, minha fala é mortiça. Meu corpo sente os hematomas de minha alma.

¹ Atiq Rahimi, As mil casas do sonho e do terror.

sábado, 26 de junho de 2010

Ela saiu antes de a noite cair. Pela vidraça, seguiu-a com os olhos, enquanto se afastava. Sem repostas para a sua pergunta, perguntou a si mesmo se o andar de uma mulher se modificava de alguma maneira quando tinha acabado de fazer amor. Sem você, pensou um pouco depois, não encontro resposta para nada. Procurou imaginar o seu sexo mudando de forma na cadência de seu andar. Quantas vezes, principalmente quando atormentado pelo desejo, não o tinha desenhado, sem, entretanto, nunca se satisfazer com a imagem realizada? Faltava sempre alguma coisa e, a partir do momento que tentava fixá-lo na tela, omitia inevitavelmente, um aspecto ou outro. Totalmente consciente de não estar fazendo uma grande descoberta, pensou que isso se devia ao fato de que faltava a parte invisível que, mais ainda do que no caso do iceberg, era a mais importante. Evidentemente, era essa parte dissimulada que fazia toda a diferença. Um poeta das ruas, cujas estrofes eram divulgadas sem intermediário, tinha descrito o sexo ávido da mulher como um lobo uivando em um dia de inverno com a neve caindo densa.
Ismail Kadaré, As frias flores de abril.