sábado, 24 de março de 2012

O dito pelo não dito.



Para quê pormo-nos em movimento para apanharmos aquilo que já nos pertence? Cumulaste-me de tudo à saciedade e para sempre, deste-me em demasia, deixaste que eu te tomasse demais para que eu agora necessite que me dês ainda qualquer coisa mais. Quem iria querer que lhe continuassem a verter líquido num recipiente que já está cheio até à borda? *Robert Walser em A Rosa.


terça-feira, 20 de março de 2012

Os filmes franceses e italianos eram exibidos regularmente em Santo Amaro. Os mexicanos também. E, se - apesar da extraordinária beleza de Maria Felix - percebíamos como que uma inferioridade do Olimpo da Pelmex, não fazíamos - nem nos parecia concebível que em parte alguma se fizesse - nenhuma diferença de qualidade ou de importância entre as estrelas americanas e as européias. No início da nossa adolescência, era a exposição de intimidades eróticas o que nos atraia nos filmes franceses: um seio de mulher, um casal deitado numa mesma cama de ferro, a indicação indubitável de que os personagens tinham vida sexual - tudo o que não podia ser visto num filme americano, os filmes franceses ofereciam com naturalidade. (E nós tínhamos a sorte de não ter de enfrentar, àquela altura, nenhum tipo de fiscalização da idade dos espectadores, não havendo representantes do juizado de menores em Santo Amaro.) Mas o cinema italiano, à medida que o tempo passava e nós crescíamos, nos interessava cada vez mais pelo que considerávamos ser sua “seriedade”: o neo-realismo e seus desdobramentos nos foram oferecidos comercialmente e nós reagimos com a emoção de quem reconhece os traços do cotidiano nas imagens gigantescas e brilhantes das salas de projeção.

Um dos acontecimentos mais marcantes de toda a minha formação pessoal foi a exibição de La estrada de Fellini num domingo de manhã no Cine Subaé (havia sessões matinais aos domingos nesse que era o melhor - o único que chegou a ter cinemascope - dos três cinemas de Santo Amaro). Chorei o resto do dia e não consegui almoçar - e nós passamos a chamar Minha Daia de Giulietta Masina. Seu Agnelo Rato Grosso, um mulato atarracado e ignorante que era açougueiro e tocava trombone na Lira dos Artistas (uma das duas bandas de música da cidade - a outra se chamava Filhos de Apolo), foi surpreendido por mim, Chico Motta e Dasinho, chorando à saída de I vitelloni, também de Fellini, e, um pouco embaraçado. justificou-se. limpando o nariz na gola da camisa: Esse filme é a vida da gente! Lembro de Nicinha, minha irmã mais velha, comentando que, enquanto nos filmes americanos os atores trocavam algumas palavras à beira dos pratos de refeição e o corte sempre vinha antes que eles fossem vistos pondo a comida na boca e mastigando, nos filmes italianos as pessoas comiam - e às vezes falavam enquanto comiam.

*Caetano Veloso em Verdade Tropical.

sábado, 17 de março de 2012

Das flores que pedem artigo masculino.

1. Dente de leão, nome desalagante, flor curiosa, nem um pouco bela, no máximo divertida. Bonito mesmo é o sopro que a destrói em alguns minuto e pronto. Basta que se esboce no jardim e é inevitável, mais cedo ou mais tarde alguém a dissolverá no ar. Seu apelo é esse, foi feito pra isso.

2. Cravo, tem como destino as lapelas de palhaço, orna também os casacos de homens malajambrados porém esforçados. É tristíssimo mas foi feito pra isso.

terça-feira, 6 de março de 2012

Gostava dele porque era ele, porque era eu. Montaigne.