sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Para C.

Então ela abriu os olhos instantaneamente, em guarda.
Não despertou aos poucos, em abandono e confiança no novo dia. Tão logo a luz ou o som se registrou em sua consciência, o perigo estava no ar, e ela se levantou para ir de encontro às suas investidas.
A primeira expressão dela foi de tensão, coisa que não era bela. Assim como a ansiedade dissipava a força do corpo, também dava ao rosto uma incerteza trêmula, oscilante, que não era beleza, como aquela de um desenho fora de foco.
Lentamente, o que ela compôs com o novo dia foi seu próprio foca, a fim de reconciliar corpo e mente. Isso foi feito com esforço, como se todas as dissoluções e dispersões do seu eu na noite anterior fossem difíceis de reagrupar. Ela era como uma atriz que deve compor um rosto, uma atitude para enfrentar o dia.
O lápis de sombrancelha já não era mais uma mera ênfase de carvão sobre as sombrancelhas louras, mas um desenho necessário para equilibrar uma assimetria caótica. O make-up e o pó-de-arroz não foram aplicados simplesmente para salientar uma textura de porcelana, para apagar as inchações desiguais causadas pelo sono, mas para alisar os pronunciados sulcos desenhados por pesadelos, para reformar os contornos e as superfícies borradas da maçã do rosto, para extinguir as contradições e os conflitos que prejudicavam a clareza das linhas da face, perturbando a pureza de suas formas.
Ela precisava redesenhar o rosto, alisar a fronte ansiosa, separar os cílios esmagados, desgastar os traços de secretas lágrimas anteriores, acentuar a boca como se fosse em uma tela, de modo a conservar seu sorriso luxuriante.
Um caos interior, semelhante àqueles vulcões secretos que, de repente, erguem os sulcos nítidos de um campo pacificamente arado, aguardava, por trás de todas as desordens do rosto, cabelo e roupa, uma fissura por onde explodir.
O que ela via agora no espelho era um rosto excitado, de olhos claros, sorrindo, liso, lindo. Os múltiplos atos de compostura e artifício apenas lhe dissolveram as ansiedades; agora que se sentia preparada pra enfrentar o dia, emergia sua verdadeira beleza, que havia sido desgastada e arruinada pela ansiedade.
Ela julgou suas roupas com a mesma avaliação dos possíveis perigos externos que fizera do novo dia, o qual entrara através das janelas e portas fechadas.
Acreditando no perigo brotado tanto de objetos quanto de pessoas, que vestido, que sapato, que casaco exigiria menos de seu coração e de seu corpo em pânico?Pois uma roupa também era uma mudança , uma disciplina, uma armadilha que, uma vez adotada, poderia influenciar o autor.
Acabou por escolher um vestido com um buraco na manga. Da última vez que o vestira, estivera diante de um restaurante luxuoso demais, ostentatório demais, no qual tinha medo de entrar, mas em vez de dizer: "Tenho medo de entrar aí", foi capaz de dizer: "Não posso entrar aí com um buraco na manga".
Escolheu a capa que parecia mais protetora, mais envolvente.
A capa também tinha dentro de suas dobras algo que ela imaginava ser uma qualidade possuída exclusivamente por homens: certo ímpeto, certa audácia, certa arrogância da liberdade negada às mulheres.

*Anïs Nin em Uma espiã na casa do amor.

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